Por: Cynthia Garcia
O Parque do Ibirapuera, em São Paulo, abriga três exposições que instigam a sensibilidade de maneiras distintas. Até 11 de dezembro, no prédio da Bienal de São Paulo, “Em Nome dos Artistas”, com obras do acervo do Astrup Fearnly Museum of Modern Art de Oslo, Noruega, oferece um foco provocador principalmente na arte norte-americana contemporânea, determinante para o que denominamos arte conceitual. Outra vista abrangente, sinalizadora de caminhos, está no MAM/SP, até 18/12, no 32º Panorama da arte brasileira.
Enquanto essas duas têm a entrada cobrada – que não critico -, a terceira é gratuita e uma grata experiência de coisa nossa, da nossa ancestralidade verde-amarela genuína, que eu, sulista urbana globalizada, preciso estar mais atenta e me orgulhar mais, tão submersa que estou no chamado do contemporâneo, real e virtual.
Conclamando nossas raízes e atiçando o debate sobre o processo de massificação que corrói a identidade cultural desse nosso Brasil plural, a mostra “O sertão: da caatinga, dos santos, dos beatos e dos cabras da peste” festeja os sete anos do Museu Afro Brasil com artistas e artífices que dão vigor à arte popular brasileira em especial à nordestina de Juazeiro do Norte, no Ceará. Tanto o curador e diretor do museu, Emanoel Araujo, assim como a museóloga Dodora Guimarães, consultora do evento (acreana, vive em Fortaleza, casada com Sérvulo Esmeraldo, maior escultor do nordeste), são figuras de proa na preservação desse patrimônio. Ancorada em personagens como Padre Cícero e Lampião – ou como diria Glauber, “Deus e o Diabo na terra do sol” -, a mostra revela o manancial estético dos mitos, lendas e ritos do cangaço através dos fazeres e saberes do vaqueiro, da bordadeira, da figureira, da costureira, do gravador, do ceramista, do escultor, do pintor, do santeiro, do artista do barro, do flandres… em expografia com 800 peças cenografadas pelo cearense André Calazares.
Apesar de sofrer de degeneração muscular, o xilogravurista Francisco de Almeida, cearense de Crateús, filho de ourives e de bordadeira, é autor da maior peça em exibição, também exposta na última edição da Bienal do Mercosul. Trata-se de “Os quatro elementos”, uma xilogravura majestosa, incomum, de 1.50m de largura x 20m de comprimento – que poderia entrar para o Guinness -, feita com várias matrizes e técnica mista, que demorou nove meses para ser completada, e foi recentemente premiada com duas passagens para o artista visitar a Bienal de Veneza com sua mulher, a fiel Maria Eugênia, que o apoia em pé durante a entrevista. É a terceira xilo que faz nesta dimensão que exige grande maestria – a próxima irá ornamentar o aeroporto de Fortaleza. Para trabalhar neste tamanho, 2/3 da área da pequena casa onde vive é ocupada pela mesa de trabalho com uma traquitana acoplada, inventada por ele, com roldanas e coroa de bicicleta para enrolar o papel: “Trabalho 18 horas por dia. Não dá para ver a gravura porque ela fica emborcada e enrolada. Quando não consigo resolver um problema, fico o diabo! Mas quando sonho, vou a lugares que nem posso mencionar… Terminei num domingo quando a gravura me disse: ‘Não me toque'”.
Pergunto-me: por que uma obra dessa envergadura não estaria numa Bienal de São Paulo ou mesmo no Pavilhão do Brasil em Veneza? Para responder, reproduzo as palavras do maior colecionador de arte popular brasileira – um francês -, Jacques Van de Beuque (1922-2000), fundador do Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro (Arte Popular Brasileira, Câmara Brasileira do Livro, 1994): “O fato é que o valor da arte popular continua sendo contestado e relegado a um plano inferior em relação à ‘arte erudita’, apesar da imaginação e riqueza de seu repertório, da audácia plástica de suas formas, da inteligência na utilização dos recursos e dos milagres de habilidade manual. A arte popular, em sua vitalidade, extravasa os limites do objeto, irrompendo criativamente de inúmeras maneiras, sempre buscando conjugar amor e feição estética na vivência do cotidiano. (…) Sua extrema grandeza é a arte do ser humano, de saber sobreviver dentro das condições mais adversas e de, mesmo no limite da necessidade, conseguir transformar sofrimento em beleza”.
Serviço: O sertão: da caatinga, dos santos, dos beatos e dos cabras da peste Até 1 de abril de 2012 Museu Afro Brasil – www.museuafrobrasil.org.br Parque do Ibirapuera – Portão 10
De terça a domingo das 10h às 17h
“Em 1º plano, obra de Nelson Leirner, ao fundo foto de Padre Cícero”
Altar com ex-votos, no piso, xilogravura “Os 4 Elementos”, Francisco de Almeida, 1,50m x 20m, 2010
Altar com ex-votos, no piso, xilogravura “Os 4 Elementos”, Francisco de Almeida, 1,50m x 20m, 2010
”Maria Bonita”, Benjamin Abrahão, 1936
“Lampião”, Vitalino Filho, cerâmica, sem data
“Sebastiana Irinéia da Conceição, Dona Bastia”, Araquem Alcântara
Série “Vaqueiros no sertão do Ceará”, Maureen Bisilliat, 1968, acervo Instituto Moreira Salles
“Anjos com vela”, Francisco de Almeida, xilogravura e impressão, 2010, 150cm x 65cm